terça-feira, 3 de junho de 2014

As origens dos vírus

Este texto foi traduzido de Scitable, Nature Education, por Genpeace. Nossas observações estão em vermelho. Recentemente foi descoberto um mimivirus (virus gigante) em uma ameba na região amazônica. A notícia está em http://cibiqui.blogspot.com.br/2014/06/virus-gigante-na-amazonia_3.html 

O link para a página da Nature Education é 
http://www.nature.com/scitable/topicpage/the-origins-of-viruses-14398218

Por: David R. Wessner, Ph.D. (Dept. of Biology, Davidson College) © 2010 Nature Education 
Como citar: Wessner, D. R. (2010) The Origins of Viruses. Nature Education 3(9):37

Como os vírus evoluem? Eles são uma forma simplificada de algo que existiu há muito tempo, ou um ponto culminante final de elementos genéticos menores unidos ao longo da evolução?

A história evolutiva do vírus representa um tópico fascinante, embora obscuro, para virologistas e biólogos celulares. Devido à grande diversidade entre os vírus, os biólogos têm grandes dificuldades em alcançar uma forma de classificar adequadamente estas entidades e de relacioná-las com a árvore convencional que representa a organização das várias formas de vida. Os vírus podem representar elementos genéticos que ganham a habilidade de se mover entre as células. Eles podem representar organismos que eram previamente de vida livre e que se tornaram parasitas. Eles podem ser os precursores da vida como a conhecemos.

Biologia básica dos vírus
Sabemos que os vírus são bastante diversificados. Ao contrário de todas as outras entidades biológicas, alguns vírus, como o poliovírus, têm genomas de RNA e alguns, como o herpesvírus, têm genomas de DNA. Além disso, alguns vírus (como o vírus da gripe) têm genomas de fita simples, enquanto outros (como a varíola) têm genomas de fita dupla. Suas estruturas e estratégias de replicação são igualmente diversas. No entanto, os vírus de fato compartilham algumas características: Primeiro, eles geralmente são muito pequenas, com um diâmetro de menos de 200 nanômetros (nm). Em segundo lugar, eles podem replicar somente dentro de  uma célula hospedeira. Em terceiro lugar, nenhum vírus conhecido contém ribossomos, um componente necessário da maquinaria de tradução (síntese proteica) de uma célula.

Os vírus são seres vivos?

Para analisar esta questão, precisamos ter uma boa compreensão do que queremos dizer com "vida". Embora as definições específicas possam variar, os biólogos geralmente concordam que todos os organismos vivos apresentam diversas propriedades fundamentais: eles podem crescer, reproduzir, manter uma homeostase interna, responder a estímulos, e realizar vários processos metabólicos . Além disso, as populações de organismos vivos evoluem ao longo do tempo.

Os vírus estão em conformidade com esses critérios? Sim e não. Nós todos provavelmente percebemos que os vírus se reproduzem de alguma forma. Nós podemos ser infectados com um pequeno número de partículas de vírus - pela inalação de partículas expelidas quando outra pessoa tosse, por exemplo- e depois ficam doentes vários dias mais tarde, com os vírus replicando dentro de nossos corpos. Da mesma forma, todos percebemos que os vírus evoluem ao longo do tempo. Precisamos ser vacinados contra a gripe todos os anos principalmente devido as mudanças do vírus da influenza, que evolui de um ano para o outro (Nelson & Holmes 2007).

Os vírus, no entanto, não fazem os processos metabólicos. Mais notavelmente, os vírus diferem de todos os organismos vivos porque não podem gerar ATP . Os vírus também não possuem o maquinário necessário para a tradução, como mencionado acima. Eles não possuem ribossomos e não pode formar proteínas independentemente a partir de moléculas de RNA mensageiro. Devido a estas limitações, o vírus pode replicar somente numa célula hospedeira viva. Portanto, os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios. De acordo com uma definição rigorosa de vida , eles são não vivos . Nem todos, porém, concordam necessariamente com essa conclusão. Talvez vírus representem um tipo diferente de organismo na árvore da vida - os organismos de codificação do capsídeo , ou CEOs (Figura 1 ; Raoult & Forterre 2008) (em contraste com os outros, que codificam ou produzem uma membrana, que delimita fisicamente a célula)


Figura 1: Os vírus e a arvora da vida
Embora a maioria dos biólogos julgue que os vírus não são seres vivos, alguns argumentam que os vírus poderiam ser incluídos na árvore da vida. Eles argumentam que os organismos deveriam ser divididos em organismos que codificam ribossomos (REOs) (e que também são organizados em células) e organismos que codificam um capsídeo (CEOs). As eubactérias, as arqueobactérias e os eucariotos são REOs; os vírus são CEOs © 2008 Nature Publishing Group Raoult, D. & Forterre, P. Redefining viruses: lessons from Mimivirus. Nature Reviews Microbiology 6, 315–319 (2008). Todos os direitos reservados.

De onde vêm os vírus?
Há muito debate entre virologistas sobre esta questão. . Três hipóteses principais foram formuladas: 1ª.) A hipótese progressiva ou hipótese de fuga, afirma que os vírus surgiram a partir de elementos genéticos que ganharam a habilidade de se mover entre as células; 2ª.) a hipótese regressiva, ou hipótese  de redução, afirma que os vírus são restos (ou vestígios) de organismos celulares ; e  a 3ª.  hipótese dos vírus primeiro afirma que os vírus são anteriores ou coevoluíram com seus atuais hospedeiros celulares.

A hipótese progressiva


Figura 2: Replicação de retrovírus
Logo que o retrovírus entra na célula hospedeira, a transcriptase reversa converte o genoma viral de RNA em uma fita dupla de DNA. Este DNA viral migra então para o núcleo e se integra no genoma da célula hospedeira, Os genes virais são transcritos e traduzidos. Novas partículas virais são então montadas (contendo o RNA viral), saem da célula e pode infectar outra célula.
© 2005 Nature Publishing Group Pommier, Y., Johnson, A. A., & Marchand, C. Integrase inhibitors to treat HIV/AIDS. Nature Reviews Drug Discovery 4, 236–248 (2005). Todos os direitos reservados.




Figura 3: Replicação de retrotransposons semelhantes a vírus
As RNA polimerases celulares transcrevem os retrotransposons (que fazem parte de seus genomas), formando uma cópia em RNA do elemento genético. Após a tradução, a transcriptase reversa (codificada pelo retrotransposon) converte o RNA do retrotransposon em uma fita dupla de DNA. Esta cópia em DNA do retrotransposon é então integrada, numa nova posição, no genoma da mesma célula (a integrase é codificada também pelo retrotransposon). © 2001 Nature Publishing Group Hurst, G. D. D. & Werren, J. H. The role of selfish genetic elements in eukaryotic evolution. Nature Reviews Genetics 2, 597–606 (2001). Todos os direitos reservados.


De acordo com esta hipótese, os vírus originaram-se  através de um processo progressivo . Elementos genéticos móveis, pedaços de material genético capaz de se mover dentro de um genoma, ganharam a habilidade de sair de uma célula e entrar em outra. Para conceituar essa transformação, vamos examinar a replicação do retrovírus, a família de vírus ao qual pertence o HIV.
Os retrovírus têm um genoma formado por um RNA fita simples. Quando o vírus entra na célula hospedeira, uma enzima viral, a transcriptase reversa, converte o RNA fita simples em DNA fita dupla. Este DNA viral migra para o núcleo da célula hospedeira. Outra enzima viral, a integrase, insere o DNA viral recém formado no genoma da célula hospedeira . Genes virais podem a partir daí ser transcritos e traduzidos. RNA polimerase da célula hospedeira pode produzir novas cópias fita simples do genoma de RNA do vírus . Então, os vírus da progênie (a nova geração de vírus) são encapsulados (ganham sues capsídeos)  e saem da célula para começar o processo de novo ( Figura 2 ) .

Este processo reflete muito de perto o movimento de um componente importante, embora um pouco fora do comum, da maioria dos genomas eucarióticos : o retrotransposon . Estes elementos genéticos móveis constituem surpreendentemente 42% do genoma humano (Lander et al. 2001) e podem se mover dentro do genoma através da síntese de um intermediário de RNA. Tal como retrovírus , certas classes de retrotransposons , os retrotranspossons virais, codificam uma transcriptase reversa e , muitas vezes , uma integrase . Com estas enzimas , estes elementos podem ser transcritos em RNA, transformados de volta em DNA por transcrição reversa, e depois integrados num novo local no genoma (Figura 3) . Podemos especular que a aquisição de algumas proteínas estruturais poderia permitir que o elemento saísse de uma célula e entrasse noutra, tornando-se assim um agente infeccioso. De fato, as estruturas genéticas de retrovírus e dos retrotransposons virais mostram semelhanças notáveis.

A Hipótese regressiva

Em contraste com o processo progressivo que acabamos de descrever, os vírus podem ter-se originado  através de um processo regressivo ou redutor. Os microbiologistas geralmente concordam que certas bactérias, que são parasitas intracelulares obrigatórios como espécies de Chlamydia e Rickettsia, evoluíram a partir de ancestrais de vida livre. De fato, estudos genômicos indicam que as mitocôndrias das células eucarióticas (que foram organismos de vida livre, tornaram-se simbiontes e agora são organelas) e Rickettsia prowazekii pode compartilhar um ancestral comum de vida livre (Andersson et al. , 1998). Segue-se, então, que os vírus existentes podem ter evoluído a partir de organismomais complexo, possivelmente de vida livre, que perderam informação genética ao longo do tempo à medida que adotaram uma abordagem parasitária (isto é, usando ribossomos e outros componentes celulares – nota do tradutor) para sua replicação.

Os vírus de um grupo particular, os grandes vírus nucleo-citoplasmáticos de DNA (NCLDVs) , ilustraram ainda melhor esta hipótese. Esses vírus, que incluem os vírus da varíola e o recém-descoberto gigante de todos os víru , o Mimivírus , são muito maiores do que a maioria dos vírus (La Scola et al. 2003). Um poxvírus típico em forma de tijolo, por exemplo, pode ter 200 nm de largura e 300 nm de comprimento. Com cerca de duas vezes esse tamanho, o Mimivírus apresenta um diâmetro total de cerca de 750 nm (Xiaoet al. , 2005). Por outro lado, as partículas do vírus da gripe, de forma esférica, podem ser apenas de 80 nm de diâmetro  e partículas de poliovírus têm um diâmetro de apenas 30 nm , aproximadamente 10.000 vezes menores do que um grão de sal . Os NCLDVs também possuem grandes genomas: assim, os genomas dos poxvírus muitas vezes se aproximam de 200.000 pares de bases  e os Mimivírus têm um genoma de 1,2 milhões de pares de bases (maior do que o das riquétsias e outras bactérias intracelulares – nota do tradutor), enquanto os poliovírus têm um genoma de apenas 7.500 nucleotídeos . Além de seu grande tamanho , o NCLDVs tem maior complexidade do que os outros vírus menores e dependem menos do seu hospedeiro para replicação do que outros vírus. Os genomas dos poxvírus , por exemplo , codificam um grande número de enzimas virais e fatores relacionados que permitem ao vírus produzir RNA mensageiro funcional dentro do citoplasma da célula hospedeira,

Devido ao tamanho e complexidade de NCLDVs, alguns virologistas levantaram a hipótese de que estes vírus podem ser descendentes de ancestrais mais complexas. Segundo os defensores dessa hipótese, os organismos autônomos (de vida livre– nota do tradutor) inicialmente desenvolveram uma relação simbiótica com a célula hospedeira. Ao longo do tempo , a relação virou parasitária, na medida em que o organismo se tornava mais e mais dependente do outro. À medida que se tornava mais dependente do hospedeiro, ia também perdendo genes previamente essenciais. Eventualmente, o organismo acabou incapaz de se replicar independentemente , tornando-se um parasita intracelular obrigatório, um vírus. A análise do genoma e do modo de vida so gigante Mimivírus pode apoiar esta hipótese. Este vírus contém um repertório relativamente grande de genes putativos associados a tradução - genes que podem ser restos de um sistema de tradução anteriormente completo . Curiosamente, os Mimivírus não diferem muito de bactérias parasitas , como a Rickettsia prowazekii (Raoult et al. , 2004).

A Hipótese do vírus primeiro


Figura 4: Vírus como precursores da vida organizada em células
Ao invés de terem tido origem em células previamente existentes ou de elementos genéticos celulares (uma forma mais primitiva e simples de célula), os vírus poderiam ter existido antes mesmo da vida organizada em células. Unidades auto-replicadoras da virosfera primitiva poder ter ganho a capacidade de formar membranas e paredes celulares, levando à posterior evolução dos três domínios da Vida (Eukarya, Bacteria e Archea). Os vírus então continuaram evoluindo dentro de seus hospedeiros também em evolução. © 2006 Nature Publishing Group Prangishvili, D. et al. Viruses of the Archaea: a unifying view. Nature Reviews Microbiology 4, 837-848 (2006). Todos os direitos reservados.

Ambas as hipóteses progressiva e regressiva assumem que as células existiam antes vírus. E se os vírus existissm primeiro? Recentemente, vários investigadores propuseram que os vírus podem ter sido as primeiras entidades replicadoras. Koonin e Martin (2005) postularam que os vírus existiam em um mundo pré-celular como unidades auto-replicantes (acredita-se que, antes das células contendo DNA como mensageiro genético, reações bioquímicas complexas abióticas eram comandadas por informações derivadas de RNAs primitivos, no que se convencionou chamar de Mundo a RNA. Neste ambiente vírus poderiam se replicar sem células – observações do tradutor). Com o tempo, essas unidades , segundo eles argumentam, tornaram-se mais organizadas e mais complexas. Eventualmente, as enzimas para a síntese das membranas e paredes celulares evoluiram , resultando na formação de células. Os vírus, então, poderiam ter existido antes das eubactérias, arqueobactérias e eucariontes (Figura 4 ; . Prangishvili et al 2006).

A maioria dos biólogos concorda que as primeiras moléculas replicantes consistiam de RNA, e não DNA (a síntese abiótica de RNA é possível, mas não a DNA – nota do tradutor). Sabemos também que algumas moléculas de RNA, as ribozimas , exibem propriedades enzimáticas e podem catalisar reações químicas. Talvez algumas moléculas simples de RNA que podiam se replicar, existentes antes da primeira célula ser formada , desenvolveram a capacidade de infectar as primeiras células . Poderiam os  vírus de RNA fita simples de hoje ser descendentes dessas moléculas de RNA pré células (originárias de um mundo pré-biótico – nota do tradutor)?

Outros têm argumentado que os precursores dos NCLDVs de hoje deram origem às células eucarióticas. Villarreal e DeFilippis (2000) e Bell ( 2001) descreveram modelos explicando esta proposta. Os dois grupos postulam que o núcleo atual das células eucarióticas talvez tenha surgido a partir de um evento endosimbiótico em que um vírus de DNA complexo, envolto por membrana, tornou-se um residente permanente de uma célula eucariótica emergente.

Talvez nenhuma hipótese esteja correta
De onde os vírus vieram não é uma pergunta fácil de responder . Pode-se argumentar bastante convincentemente de que certos vírus, tais como os retrovírus, surgira através de um processo progressivo: alguns elementos genéticos móveis teriam ganho a habilidade de viajar entre as células , tornando-se agentes infecciosos. Pode-se também argumentar que os vírus grandes de DNA surgiram através de um processo regressivo, em que entidades outrora independentes perderam genes-chave ao longo do tempo e adotaram uma estratégia de replicação parasitária. Finalmente, a ideia de que os vírus deram origem à vida como a conhecemos apresenta possibilidades muito interessantes. É possível que os vírus de hoje tenham surgido várias vezes, através de vários mecanismos. Talvez mesmo todos os vírus tenham surgido através de um mecanismo ainda a ser descoberto. A pesquisa básica de hoje em campos como a microbiologia, genômica e biologia estrutural podem nos fornecer respostas a esta questão básica.

Resumo
A análise das origens da vida fascina os cientistas e o público em geral. Compreender a história evolutiva dos vírus pode lançar alguma luz sobre este assunto interessante. Até à data, não existe uma explicação clara para a(s) origem(s) dos vírus. Os vírus podem ter surgido a partir de elementos genéticos móveis que ganharam a capacidade de mover-se entre células. Eles podem ser descendentes de organismos anteriormente de vida livre que se adaptaram a uma estratégia de replicação parasitária. Talvez ainda os vírus já existissem antes das células, e levaram ao surgimento destas. Estudos futuros podem nos fornecer respostas mais claras. Ou podem revelar que a resposta é ainda mais sombria do que parece agora.

Referências e Leituras Recomendadas

Andersson, S. G. E. et al. The genome sequence of Rickettsia prowazekii and the origin of mitochondria. Nature 396, 133–143 (1998) doi:10.1038/24094.
Bell, P. J. L. Viral eukaryogenesis: Was the ancestor of the nucleus a complex DNA virus? Journal of Molecular Evolution 53, 251–256 (2001) doi:10.1007/s002390010215.
Koonin, E. V. & Martin, W. On the origin of genomes and cells within inorganic compartments. Trends in Genetics 21, 647–654 (2005).
Lander, E. S. et al. Initial sequencing and analysis of the human genome. Nature 409, 860–921 (2001) doi:10.1038/35057062.
La Scola, B. et al. A giant virus in Amoebae. Science 299, 2033 (2003) doi:10.1126/science.1081867.
Nelson, M. I. & Holmes, E. C. The evolution of epidemic influenza. Nature Reviews Genetics 8, 196–205 (2007) doi:10-1038/nrg2053.
Prangishvili, D., Forterre, P. & Garrett, R. A. Viruses of the Archaea: A unifying view. Nature Reviews Microbiology 4, 837–848 (2006) doi:10.1038/nrmicro1527.
Raoult, D. & Forterre, P. Redefining viruses: Lessons from mimivirus. Nature Reviews Microbiology 6, 315–319 (2008) doi:10.1038/nrmicro1858.
Raoult, D. et al. The 1.2-megabase genome sequence of Mimivirus. Science 306, 1344–1350 (2004) doi:10.1126/science.1101485.
Villarreal, L. P. & DeFilippis, V. R. A hypothesis for DNA viruses as the origin of eukaryotic replication proteins. Journal of Virology 74, 7079–7084 (2000).
Xiao, C. et al. Cryo-electron microscopy of the giant Mimivirus. Journal of Molecular Biology 353, 493–496 (2005) doi:10.1016/j.jmb.2005.08.060.


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