terça-feira, 30 de julho de 2013

Transgenia

(Este texto está ainda incompleto. Foi produzido a 4 mãos pela Larissa Mélo do Nascimento e pelo Paulo Andrade)

Introdução: modificação genética através do melhoramento clássico

A necessidade do desenvolvimento de organismos geneticamente modificados se inicia diante da problemática encontrada em cada situação, podendo ser em pesquisa ou no atendimento a uma demanda do mercado. Por exemplo: uma determinada cultivar (planta) sensível à pragas (fungos, bactérias, insetos) ou sensível a intempéries ambientais (estresse hídrico, salinização de solo). Ou ainda, um determinado animal de corte que pode oferecer maior rentabilidade. Para tal, até recentemente vinha sendo aplicado o melhoramento genético clássico, que em plantas é praticado pelo homem há cerca de 10.000 anos, desse a época da domesticação de algumas espécies vegetais, e que também é muito antigo no caso dos animais de criação e companhia. Esse tipo de melhoramento em plantas é baseado no cruzamento entre espécies selvagens, entre espécies selvagens e plantas cultivadas ou ainda entre variedades cultivadas, resultando em troca gênica, geração de variação nos descendentes e seleção para os caracteres desejados. Esse processo é lento e leva em última instância a um aumento na frequência dos alelos favoráveis à determinada situação (um fenótipo desejado).
 Um exemplo de melhoramento vegetal em milho ocorreu nos Estados Unidos quando colonos, por acidente ou experimentalmente, cruzaram o milho denominado Flints do Norte e com o Dents do sul. E a partir desses cruzamentos surgiu uma raça inteiramente nova de milho chamada Corn Belt Dents. Esta linhagem é o ancestral de quase todos os híbridos de milho produzidos atualmente nos Estados Unidos. 


Figura 1. Cruzamento entre espécies de milho. Milho Northern Flint (espiga longa e amarela, à esquerda), Southern Dent (maior número e tamanho das sementes, à direita) e um exemplo do milho Belt Dent (ao centro). (Fonte:Universidade de Nebraska Lincoln, 2004)

Outro bom exemplo, agora animal, é a criação do Gado Girolando, onde se objetivava a criação de uma raça leiteira adaptada ao clima brasileiro; tal raça é  baseada no cruzamento do Gado Holandês, bom produtor de leite, mas vulnerável à doenças e de baixa adaptabilidade climática, com o Gado Gyr indiano, mais resistente à doenças porém de baixa produção leiteira, como ilustrado na figura 2.


Figura 2. Exemplificação de melhoramento animal clássico através de cruzamento e seleção para criação de nova raça carregando as características do fenótipo desejado. (fonte: http://www.girolando.com.br/index.php?paginasSite/girolando,2,pt)

Embora esse tipo de melhoramento genético dê bons resultados há problemas associados. O primeiro e mais sério é a erosão gênica, que ocorre devido a sucessivos cruzamentos entre variedades geneticamente muito semelhantes, posterior criação/cultivo e dispersão das espécies híbridas. Este procedimento promove, em grau cada vez mais acentuado, a uniformidade das linhagens por exclusão das outras menos competitivas. Desse modo, as linhagens produzidas atualmente têm uma base genética muito estreita por perda de genes encontrados em ancestrais selvagens, após múltiplos processos de segregação, recombinação e seleção a que a cultura vem sendo submetida nas práticas de melhoramento genético. Por isso, as linhagens modernas não podem mais fornecer alelos para o melhoramento genético clássico. Em algumas espécies vegetais já é claro que o melhoramento clássico encontra-se estagnado há anos, como na cana de açúcar.
Cabe ressaltar que, para as espécies vegetais de interesse econômico, a diversidade está preservada nos bancos de germoplasma e as variedades silvestres continuam a ser uma importante fonte de novos alelos e até de novos genes. No caso das espécies animais, os centros de origem das espécies e variedades comerciais continuam a fornecer diversidade.
Um segundo problema atual do melhoramento genético clássico é que mesmo quando há conservação das espécies selvagens e conquanto sejam realizadas expedições que visem o “redescobrimento” dessas espécies, ainda assim não é possível obter todas as características desejadas para determinada espécie. Esta afirmação torna-se bastante clara quando pensamos que a técnica do melhoramento genética clássico visa a “hibridização” de duas características, A e B, em um determinado organismo hibrido, AB. Contudo se um fenótipo C desejado não está presente em nenhum dos ancestrais que possa ser cruzado, essa meta “C” não vai ser alcançada. Entende-se então que o melhoramento genético clássico faz o cruzamento e desenvolve espécies com frequências alélicas diferenciadas, porém não cria novos genes nem novos alelos.

A transgenia como superação das limitações impostas ao melhoramento clássico
Embora seja evidente o progresso trazido pelo melhoramento genético, os desafios associados de forma mais geral à agricultura, sobretudo neste século, ainda não foram superados: a privação de recursos hídricos, o aumento da temperatura global, a missão de alimentar uma população humana sempre crescente, a necessidade de aumento constante da produtividade (evitando uma expansão descontrolada das fronteiras agrícolas), a limitação do melhoramento genético clássio e, principalmente, a susceptibilidade das linhagens atuais a estresses abióticos, doenças e pragas. Na busca de soluções tecnológicas que contribuam para minimizar ou solucionar os problemas listados acima, cientistas e desenvolvedores em instituições de pesquisa e em empresas incorporaram a transgenia à agricultura moderna.
A transgenia pode ser entendida como a introdução de determinada construção genética em um organismo alvo almejando a obtenção de um fenótipo específico. Em geral, o novo gene (em alguns casos, vários novos genes) é originário de uma espécie que não cruza com a planta de interesse. Da mesma forma, outros elementos da construção genética também têm origem em organismos sexualmente incompatíveis e até em vírus. Entretanto, em alguns casos, os genes proveem do mesmo organismo que será transformado e nestes casos rigorosamente não se poderia falar em transgenia, mas em cisgenia. Ainda em outros casos nada novo é introduzido, mas um ou mais genes ou seus elementos reguladores são desligados, no que se convencionou chamar nocautes (knock outs). Modernamente, os genes sequer proveem de outros organismos, podendo ser construtos inteiramente sintéticos. Ainda assim, por extensão, todos podem ser tratados como transgênicos, pelo menos enquanto nomes específicos não ganham aceitação geral. Outra denominação bastante empregada é a de Organismo Geneticamente Modificado (OGM), mas ela é demasiado abrangente uma vez que também podemos entender as plantas e animais melhorados de forma clássica como geneticamente modificados. A denominação OGM ou OVM (organismo vivo modificado) é, correntemente, sinônimo de transgênico e, por extensão, de cisgênicos e nocautes.

Construção de transgênicos
Para trabalharmos a transgenia didaticamente, iremos abordá-la através da exemplificação de modelos reais de linhagens vegetais e animais desenvolvidas por biotecnologia, com foco nos seguintes pontos:
·         pergunta condutora do estudo
·         fenótipo desejado e sua presença em possível organismo doador
·         construção do vetor de expressão
·         transformação do organismo receptor
·         possível sucesso das linhagens transgênicas obtidas (escolha do evento elite).
Nosso primeiro caso de estudo é um milho híbrido resistente à lagarta-do-cartucho e a outros lepidópteros. De acordo com a Embrapa a lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda) é considerada a principal praga da cultura do milho no Brasil. Em condições climáticas favoráveis, aumenta sua população, consumindo estruturas da planta e comprometendo a produção de grãos(www.yieldgard.com.br/manejo.asp). Após a eclosão, as lagartas iniciam o processo de alimentação raspando as folhas jovens do milho. Com o crescimento da lagarta, há maior consumo foliar, portanto ocorre maior injúria nas folhas (destruição do cartucho). As perdas são variáveis, podendo chegar a 40% da produção, equivalente a mais de 400 milhões de dólares por ano. Até o momento não foi possível desenvolver uma cultivar de milho resistente à lagarta por melhoramento genético clássico.
A pergunta condutora é, portanto: pode-se obter uma planta de milho resistente à lagarta do cartucho por transgenia?  Na prática agrícola observa-se que alguns organismos, quando presentes no milho, são agentes naturais contra a infestação pela lagarta-do-cartucho, tais como os fungos (Nomuraea rileyii, Botrytis rileyi, Beauveria globulifera, etc.), os vírus (especialmente os Baculovirus) e a bactéria Bacillus thuringiensis. Essa bactéria gram-positiva, aeróbica, formadora de esporos, tem muitas subespécies e patovares com distintas propriedades biológicas e especificidade contra insetos, e são comumente encontradas em habitats como solos, insetos, silos e superfície de plantas.
O fenótipo desejado (letalidade para lagarta-do-cartucho) e sua presença em possível organismo doador (no caso, uma linhagem de B. thuringiensis) podem agora ser discutidos.  O gene cry1Ab foi isolado da bactéria Bacillus thuringiensis subsp. kurstaki cepa HD-1 obtida de lagartas do cartucho mortas com elevada eficiência e o produto da expressão do gene cry1Ab é a proteína Cry1Ab, que exerce a atividade inseticida sobre as referidas pragas, protegendo as plantas transgênicas dos danos causados por pragas da Ordem Lepidoptera. Para que tal ação ocorra a proteína nativa deve ser inicialmente clivada em pH alcalino no tubo digestivo do inseto. O processo segue vários passos adicionais, mostrados na figura 3.

Figura 3:  Modelo de ação das toxinas Cry1A. 1. Solubilização dos cristais de toxina; 2. Clivagem inicial pelas proteases do tubo digestivo do inseto; 3. TLigação de monômeros da toxina a receptores e segunda clivagem por proteases ligadas à membrana; 4.Formação de oligômeros da toxina efetivos em se inserir na membrana das células do epitélio intestinal; 5. Ligação dos oligômeros a receptores na membrana; 6. Formação dos poros líticos. (fonte: http://www.intechopen.com/download/pdf/44118).
A figura 4 sintetiza a forma como a proteína CRY produzida pela planta transgênica (na verdade um fragmento da proteína nativa, com atividade tóxica) age in vivo. Observe-se que não é necessária a clivagem enzimática.

Figura 4. Modelo proposto de ação da toxina CRY após ligação ao receptor. A toxina se liga ao receptor BT-R na membrana da célula do inseto e estimula a proteína G e AC, as quais promovem a produção intracelular de cAMP, ativando a cascata da PKA que resulta em desestabilização de citoesqueleto e canais de íons, levando a morte celular. Fonte: Zhang X et al. 2006

Nosso próximo passo é examinar como a construção foi montada em um plasmídeo bacteriano para, ao final, ser recortada dele e empregada na transformação do milho (www.yieldgard.com.br/caracterizacao.asp‎). O plasmídeo PV-ZMBK07 contém o gene cry1Ab sob o controle do promotor E35S melhorado (ODELL et al., 1985). Este promotor é derivado de um gene do vírus do mosaico da couve-flor. A seqüência do gene cry1Ab foi modificada para aumentar a expressão da proteína Cry1Ab em plantas, através da otimização de códons. A construção deste plasmídeo reuniu em um só cassete, além do gene e do promotor, uma seqüência espaçadora (um íntron do gene hsp70, que codifica a proteína de choque de térmico), a seqüência de finalização da transcrição NOS 3’, a região alfa do gene lacZ (que permite seleção das bactérias transformadas pela cor da colônia), a seqüência ori-pUC (que garante a replicação do plasmídeo) e o gene nptII (neomicina fosfotransferase), que confere resistência a antibióticos aminoglicosídicos (canamicina, neomicina e geneticina) e que permite a seleção das bactérias transformadas) (Figura 5).


Figura 5. Representação esquemática do plasmídeo PV-ZMBK07 utilizado para obtenção da linhagem de milho MON810. (Fonte: http://www.scritube.com/medicina/alimentatie-nutritie/Identificarea-si-cuantificarea15656.php)

 O ponto focal seguinte é o método de transformação. O evento elite de milho transgênico MON 810 foi produzido pelo método de biolística ou aceleração de micropartículas (BOX 1) em tecido embriogênico de milho com um fragmento do plasmídeo PV-ZMBK07, cortado com a enzima de restrição NotI. A análise de DNA do milho transformado por Southern blot demonstrou que uma única cópia funcional da seqüência do gene cry1Ab foi integrada ao genoma do milho híbrido receptor. Com base na caracterização molecular, os seguintes elementos genéticos do plasmídeo PV-ZMBK07 foram identificados no milho transgênico elite, após a transformação e seleção o promotor E35S, o íntron hsp70 e o gene cry1Ab. A seqüência NOS 3', responsável pela terminação da transcrição, presente no plasmídeo PV-ZMBK07 e no fragmento empregado na transformação, não foi incorporada no genoma do milho, mas perdida devido a uma quebra na extremidade 3’ do cassete. Como mencionamos acima, a proteína nativa Cry1Ab tem peso molecular de 131 kD enquanto que a expressa nesta variedade de milho GM tem um peso molecular de apenas 91 kD, uma vez que o gene foi truncado propositalmente para fornecer a proteína em sua forma ativa, sem necessidade de clivagem em pH alcalino no intestino do inseto. O menor peso molecular foi confirmado em análises de Western blot com extratos de tecido do milho GM.

Nunca é demais lembrar que a seleção das plântulas transformadas é feita em cultura de células vegetais. Como veremos adiante, milhares de plantas são examinadas até que uma seja selecionada para o mercado. Cada uma destas plantas transformadas é denominada evento e a escolhida para o mercado é chamada evento elite.
Nosso último ponto focal deverá ser a escolha do evento elite. Assim como o melhorista inicia seu trabalho com milhares de plantas candidatas, o biotecnólogo também começa de um conjunto muito amplo de plantas transformadas candidatas. A figura 6 a seguir ilustra este ponto.


Figura 6. O processo de seleção do evento elite é tanto ou mais rigoroso do que o da variedade elite no melhoramento convencional. Em cada etapa, ou bem a planta se comporta exatamente como esperado, ou ela será descartada. Sobram apenas os poucos eventos (ou variedades) que são agronomicamente idênticos aos parentais, exceto pela nova propriedade. Assim são avaliados os efeitos inesperados no comportamento e outros fenótipos.


Conclusão do primeiro exemplo

Até agora, pelo seu amplo uso no Mundo, plantas transgênicas resistentes a insetos promovem um efetivo controle de pragas e permitem um aumento da produtividade, sem afetar as espécies não-alvo, especialmente os inimigos naturais. Também permitem uma importante redução no uso de inseticidas. O parecer da CTNBio sobre os riscos ambientais e a inocuidade alimentar deste milho pode ser lido em http://cera-gmc.org/docs/decdocs/08-179-002.pdf. É importante lembrar que as proteínas Cry produzidas pelo Bacillus thuringiensis já foram extensivamente testadas e apresentam um histórico de uso seguro de mais de 40 anos. Coletivamente, esses estudos com as proteínas Cry demonstraram a ausência de toxicidade dérmica e oral (aguda, subcrônica ou crônica) associadas com pesticidas microbianos, incluindo as formulações comerciais que contêm a proteína Cry1Ab.