(Este texto está ainda incompleto. Foi produzido a 4 mãos pela Larissa Mélo do Nascimento e pelo Paulo Andrade)
Introdução: modificação genética através do
melhoramento clássico
A necessidade do desenvolvimento de organismos geneticamente modificados se inicia diante da problemática encontrada em cada situação, podendo ser em pesquisa ou no atendimento a uma demanda do mercado. Por exemplo: uma determinada cultivar (planta) sensível à pragas (fungos, bactérias, insetos) ou sensível a intempéries ambientais (estresse hídrico, salinização de solo). Ou ainda, um determinado animal de corte que pode oferecer maior rentabilidade. Para tal, até recentemente vinha sendo aplicado o melhoramento genético clássico, que em plantas é praticado pelo homem há cerca de 10.000 anos, desse a época da domesticação de algumas espécies vegetais, e que também é muito antigo no caso dos animais de criação e companhia. Esse tipo de melhoramento em plantas é baseado no cruzamento entre espécies selvagens, entre espécies selvagens e plantas cultivadas ou ainda entre variedades cultivadas, resultando em troca gênica, geração de variação nos descendentes e seleção para os caracteres desejados. Esse processo é lento e leva em última instância a um aumento na frequência dos alelos favoráveis à determinada situação (um fenótipo desejado).
Um exemplo de melhoramento vegetal em milho
ocorreu nos Estados Unidos quando colonos, por acidente ou experimentalmente,
cruzaram o milho denominado Flints do
Norte e com o Dents do sul. E a
partir desses cruzamentos surgiu uma raça inteiramente nova de milho chamada Corn Belt Dents. Esta linhagem é o
ancestral de quase todos os híbridos de milho produzidos atualmente nos Estados
Unidos.
Figura 1. Cruzamento entre espécies de milho. Milho Northern Flint (espiga longa e amarela, à esquerda), Southern Dent (maior número e tamanho
das sementes, à direita) e um exemplo do milho Belt Dent (ao centro). (Fonte:Universidade de Nebraska Lincoln,
2004)
Outro bom exemplo, agora
animal, é a criação do Gado Girolando, onde se objetivava a criação de uma raça
leiteira adaptada ao clima brasileiro; tal raça é baseada no cruzamento do Gado Holandês, bom
produtor de leite, mas vulnerável à doenças e de baixa adaptabilidade climática,
com o Gado Gyr indiano, mais resistente à doenças porém de baixa produção
leiteira, como ilustrado na figura 2.
Figura 2. Exemplificação de
melhoramento animal clássico através de cruzamento e seleção para criação de
nova raça carregando as características do fenótipo desejado. (fonte: http://www.girolando.com.br/index.php?paginasSite/girolando,2,pt)
Embora esse
tipo de melhoramento genético dê bons resultados há problemas associados. O
primeiro e mais sério é a erosão gênica,
que ocorre devido a sucessivos cruzamentos entre variedades geneticamente muito
semelhantes, posterior criação/cultivo e dispersão das espécies híbridas. Este
procedimento promove, em grau cada vez mais acentuado, a uniformidade das
linhagens por exclusão das outras menos competitivas. Desse modo, as linhagens
produzidas atualmente têm uma base genética muito estreita por perda de genes
encontrados em ancestrais selvagens, após múltiplos processos de segregação, recombinação
e seleção a que a cultura vem sendo submetida nas práticas de melhoramento
genético. Por isso, as linhagens modernas não podem mais fornecer alelos para o
melhoramento genético clássico. Em algumas espécies vegetais já é claro que o
melhoramento clássico encontra-se estagnado há anos, como na cana de açúcar.
Cabe
ressaltar que, para as espécies vegetais de interesse econômico, a diversidade
está preservada nos bancos de germoplasma e as variedades silvestres continuam
a ser uma importante fonte de novos alelos e até de novos genes. No caso das
espécies animais, os centros de origem das espécies e variedades comerciais
continuam a fornecer diversidade.
Um segundo
problema atual do melhoramento genético clássico é que mesmo quando há
conservação das espécies selvagens e conquanto sejam realizadas expedições que
visem o “redescobrimento” dessas espécies, ainda assim não é possível obter
todas as características desejadas para determinada espécie. Esta afirmação torna-se
bastante clara quando pensamos que a técnica do melhoramento genética clássico
visa a “hibridização” de duas características, A e B, em um determinado
organismo hibrido, AB. Contudo se um fenótipo C desejado não está presente em
nenhum dos ancestrais que possa ser cruzado, essa meta “C” não vai ser
alcançada. Entende-se então que o melhoramento genético clássico faz o cruzamento
e desenvolve espécies com frequências alélicas diferenciadas, porém não cria novos genes nem novos alelos.
A transgenia como superação das limitações impostas
ao melhoramento clássico
Embora seja
evidente o progresso trazido pelo melhoramento genético, os desafios associados
de forma mais geral à agricultura, sobretudo neste século, ainda não foram superados:
a privação de recursos hídricos, o aumento da temperatura global, a missão de
alimentar uma população humana sempre crescente, a necessidade de aumento
constante da produtividade (evitando uma expansão descontrolada das fronteiras
agrícolas), a limitação do melhoramento genético clássio e, principalmente, a
susceptibilidade das linhagens atuais a estresses abióticos, doenças e pragas.
Na busca de soluções tecnológicas que contribuam para minimizar ou solucionar
os problemas listados acima, cientistas e desenvolvedores em instituições de
pesquisa e em empresas incorporaram a transgenia à agricultura moderna.
A transgenia
pode ser entendida como a introdução de determinada construção genética em um
organismo alvo almejando a obtenção de um fenótipo específico. Em geral, o novo
gene (em alguns casos, vários novos genes) é originário de uma espécie que não
cruza com a planta de interesse. Da mesma forma, outros elementos da construção
genética também têm origem em organismos sexualmente incompatíveis e até em
vírus. Entretanto, em alguns casos, os genes proveem do mesmo organismo que
será transformado e nestes casos rigorosamente não se poderia falar em
transgenia, mas em cisgenia. Ainda em outros casos nada novo é introduzido, mas
um ou mais genes ou seus elementos reguladores são desligados, no que se
convencionou chamar nocautes (knock outs).
Modernamente, os genes sequer proveem de outros organismos, podendo ser
construtos inteiramente sintéticos. Ainda assim, por extensão, todos podem ser
tratados como transgênicos, pelo menos enquanto nomes específicos não ganham
aceitação geral. Outra denominação bastante empregada é a de Organismo
Geneticamente Modificado (OGM), mas ela é demasiado abrangente uma vez que
também podemos entender as plantas e animais melhorados de forma clássica como
geneticamente modificados. A denominação OGM ou OVM (organismo vivo modificado)
é, correntemente, sinônimo de transgênico e, por extensão, de cisgênicos e
nocautes.
Construção de transgênicos
Para
trabalharmos a transgenia didaticamente, iremos abordá-la através da
exemplificação de modelos reais de linhagens vegetais e animais desenvolvidas
por biotecnologia, com foco nos seguintes pontos:
·
pergunta condutora do estudo
·
fenótipo desejado e sua presença em possível organismo doador
·
construção do vetor de expressão
·
transformação do organismo receptor
·
possível sucesso das linhagens transgênicas obtidas (escolha do evento
elite).
Nosso primeiro caso de estudo é um milho híbrido resistente à
lagarta-do-cartucho e a outros lepidópteros. De acordo com a Embrapa a lagarta-do-cartucho (Spodoptera
frugiperda) é considerada a principal
praga da cultura do milho no Brasil. Em condições climáticas favoráveis,
aumenta sua população, consumindo estruturas da planta e comprometendo a
produção de grãos(www.yieldgard.com.br/manejo.asp).
Após a eclosão, as lagartas iniciam o processo de alimentação raspando as
folhas jovens do milho. Com o crescimento da lagarta, há maior consumo foliar,
portanto ocorre maior injúria nas folhas (destruição do cartucho). As perdas
são variáveis, podendo chegar a 40% da produção, equivalente a mais de 400
milhões de dólares por ano. Até o momento não foi possível desenvolver uma
cultivar de milho resistente à lagarta por melhoramento genético clássico.
A pergunta condutora
é, portanto: pode-se obter uma planta de milho resistente à lagarta do cartucho
por transgenia? Na prática agrícola
observa-se que alguns organismos, quando presentes no milho, são agentes
naturais contra a infestação pela lagarta-do-cartucho, tais como os fungos (Nomuraea rileyii, Botrytis rileyi,
Beauveria globulifera, etc.), os
vírus (especialmente os Baculovirus) e a bactéria Bacillus thuringiensis. Essa bactéria gram-positiva, aeróbica,
formadora de esporos, tem muitas subespécies e patovares com distintas
propriedades biológicas e especificidade contra insetos, e são comumente
encontradas em habitats como solos, insetos,
silos e superfície de plantas.
O fenótipo desejado
(letalidade para lagarta-do-cartucho) e
sua presença em possível organismo doador (no caso, uma linhagem de B. thuringiensis) podem agora ser
discutidos. O gene
cry1Ab foi isolado da bactéria Bacillus thuringiensis subsp. kurstaki
cepa HD-1 obtida de lagartas do cartucho mortas com elevada eficiência e o
produto da expressão do gene cry1Ab é a proteína Cry1Ab, que exerce a atividade
inseticida sobre as referidas pragas, protegendo as plantas transgênicas dos
danos causados por pragas da Ordem Lepidoptera. Para que tal ação ocorra a proteína
nativa deve ser inicialmente clivada em pH alcalino no tubo digestivo do
inseto. O processo segue vários passos adicionais, mostrados na figura 3.
Figura 3: Modelo de ação das toxinas Cry1A. 1. Solubilização dos cristais de toxina; 2. Clivagem inicial pelas proteases do tubo digestivo do inseto; 3. TLigação de monômeros da toxina a receptores e segunda clivagem por proteases ligadas à membrana; 4.Formação de oligômeros da toxina efetivos em se inserir na membrana das células do epitélio intestinal; 5. Ligação dos oligômeros a receptores na membrana; 6. Formação dos poros líticos. (fonte: http://www.intechopen.com/download/pdf/44118).
A figura 4 sintetiza
a forma como a proteína CRY produzida pela planta transgênica (na verdade um
fragmento da proteína nativa, com atividade tóxica) age in vivo. Observe-se que não é necessária a clivagem enzimática.
Figura 4. Modelo
proposto de ação da toxina CRY após ligação ao receptor. A toxina se liga ao
receptor BT-R na membrana da célula do inseto e estimula a proteína G e AC, as quais
promovem a produção intracelular de cAMP, ativando a cascata da PKA que resulta
em desestabilização de citoesqueleto e canais de íons, levando a morte celular.
Fonte: Zhang X et al. 2006
Nosso
próximo passo é examinar como a construção
foi montada em um plasmídeo bacteriano para, ao final, ser recortada dele e
empregada na transformação do milho (www.yieldgard.com.br/caracterizacao.asp). O
plasmídeo PV-ZMBK07 contém o gene cry1Ab sob o controle do promotor E35S
melhorado (ODELL et al., 1985). Este promotor é derivado de um gene do vírus do
mosaico da couve-flor. A seqüência do gene cry1Ab foi modificada para aumentar
a expressão da proteína Cry1Ab em plantas, através da otimização de códons. A
construção deste plasmídeo reuniu em um só cassete, além do gene e do promotor,
uma seqüência espaçadora (um íntron do gene hsp70, que codifica a proteína de
choque de térmico), a seqüência de finalização da transcrição NOS 3’, a região
alfa do gene lacZ (que permite seleção das bactérias transformadas pela cor da
colônia), a seqüência ori-pUC (que garante a replicação do plasmídeo) e o gene nptII
(neomicina fosfotransferase), que confere resistência a antibióticos
aminoglicosídicos (canamicina, neomicina e geneticina) e que permite a seleção das
bactérias transformadas) (Figura 5).
Figura 5. Representação esquemática do plasmídeo PV-ZMBK07 utilizado para
obtenção da linhagem de milho MON810. (Fonte: http://www.scritube.com/medicina/alimentatie-nutritie/Identificarea-si-cuantificarea15656.php)
O ponto focal seguinte é o método de transformação. O evento elite de milho transgênico MON 810 foi produzido pelo método de biolística ou aceleração de micropartículas (BOX 1) em tecido embriogênico de milho com um fragmento do plasmídeo PV-ZMBK07, cortado com a enzima de restrição NotI. A análise de DNA do milho transformado por Southern blot demonstrou que uma única cópia funcional da seqüência do gene cry1Ab foi integrada ao genoma do milho híbrido receptor. Com base na caracterização molecular, os seguintes elementos genéticos do plasmídeo PV-ZMBK07 foram identificados no milho transgênico elite, após a transformação e seleção o promotor E35S, o íntron hsp70 e o gene cry1Ab. A seqüência NOS 3', responsável pela terminação da transcrição, presente no plasmídeo PV-ZMBK07 e no fragmento empregado na transformação, não foi incorporada no genoma do milho, mas perdida devido a uma quebra na extremidade 3’ do cassete. Como mencionamos acima, a proteína nativa Cry1Ab tem peso molecular de 131 kD enquanto que a expressa nesta variedade de milho GM tem um peso molecular de apenas 91 kD, uma vez que o gene foi truncado propositalmente para fornecer a proteína em sua forma ativa, sem necessidade de clivagem em pH alcalino no intestino do inseto. O menor peso molecular foi confirmado em análises de Western blot com extratos de tecido do milho GM.
Nunca é
demais lembrar que a seleção das plântulas transformadas é feita em cultura de
células vegetais. Como veremos adiante, milhares de plantas são examinadas até
que uma seja selecionada para o mercado. Cada uma destas plantas transformadas
é denominada evento e a escolhida para o mercado é chamada evento elite.
Nosso último
ponto focal deverá ser a escolha do evento elite. Assim como o melhorista
inicia seu trabalho com milhares de plantas candidatas, o biotecnólogo também
começa de um conjunto muito amplo de plantas transformadas candidatas. A figura
6 a seguir ilustra este ponto.
Figura 6. O processo de seleção do evento elite é tanto ou mais rigoroso do que o da variedade elite no melhoramento convencional. Em cada etapa, ou bem a planta se comporta exatamente como esperado, ou ela será descartada. Sobram apenas os poucos eventos (ou variedades) que são agronomicamente idênticos aos parentais, exceto pela nova propriedade. Assim são avaliados os efeitos inesperados no comportamento e outros fenótipos.
Conclusão do primeiro exemplo
Até agora,
pelo seu amplo uso no Mundo, plantas transgênicas resistentes a insetos promovem
um efetivo controle de pragas e permitem um aumento da produtividade, sem
afetar as espécies não-alvo, especialmente os inimigos naturais. Também
permitem uma importante redução no uso de inseticidas. O parecer da CTNBio sobre
os riscos ambientais e a inocuidade alimentar deste milho pode ser lido em http://cera-gmc.org/docs/decdocs/08-179-002.pdf.
É importante lembrar que as proteínas Cry produzidas pelo Bacillus thuringiensis já foram extensivamente testadas e
apresentam um histórico de uso seguro de mais de 40 anos. Coletivamente, esses
estudos com as proteínas Cry demonstraram a ausência de toxicidade dérmica e
oral (aguda, subcrônica ou crônica) associadas com pesticidas microbianos,
incluindo as formulações comerciais que contêm a proteína Cry1Ab.